terça-feira, 27 de julho de 2010


Uma tragédia nacional-popular
Fernando Peixoto - 12/75

Apresentação para Gota d'água

Um momento extraordinário da literatura dramática nacional: Gota d'Água de Chico Buarque e Paulo Pontes retoma uma obra clássica da dramaturgia grega, a Medéia de Eurípedes (escrita em 43/ a.C.), trazendo sua ação para um conjunto residencial operário de um subúrbio do Rio de hoje. O texto conserva a rígida estrutura clássica, mas não se submete passivamente aos elementos tradicionais desta estrutura: reinventa a cada instante, aprofundando inclusive a pesquisa por um teatro musical isento do peso de colonização cultural que sufoca o teatro brasileiro. Chico e Paulo conseguem não perder nunca o vigor do elemento trágico, fundamento do texto de Eurípedes. Mas, estudando a realidade brasileira de hoje conseguem ainda engravidar o tema original de um conteúdo social vigoroso. Análise penetrante dos níveis de comportamento do homem brasileiro de nossos dias, preso a toda uma rede de conflitos e contradições sociais, perplexo dia !te de relações de produção que transformem seu cotidiano num milagre de sobrevivência e difícil dignidade, Gota d'Água vence ainda uma das mais complexas propostas do teatro contemporâneo: tragédia escrita em versos, sua poesia evidencia um extraordinário domínio literário, uma sempre exata e sempre fascinante manipulação de palavras, que situa imediatamente o texto entre os mais sensíveis da literatura dramática nacional. E o verso, para Chico e Paulo, não é uma prisão ou um limite à articulação da linguagem. eles encontram admirável fluência em um diálogo de espantosa vitalidade efoscinante apreensão da gíria e da fala do povo brasileiro.

O povo, ultimamente impedido de assumir seu espaço no palco brasileiro, é o protagonista desta tragédia moderna. Não um povo idealizado ou paternalizado, tratado deforma ingênua ou sentimental. É um povo real, vivo, dilacerado, contraditório, buscando no difícil cotidiano os possíveis códigos de ética, dominado por paixões violentas que o cegam ou definem suas esperanças. Neste nível, todos os personagens, mesmo os secundários e 0 coro, são sujeitos, possuem suas contradições objetivas nítidas, expostas com clareza e poesia. O que transforma o texto numa conquista inalienável da dramaturgia nacional popular brasileira.

E em Gota D'Água a teatralidade e a poesia, o humor e a paixão, a observação justa e 0 permanente significado realista-crítico de todas as cenas, trazem ainda uma correta inversão do significado ideológico do teatro clássico: 0 homem, aqui, não é uma vitima de forças eternas e invencíveis. Não está passivamente submetido aos deuses e aos poderosos. Como em Brecht, o homem é o destino do homem. Gota d'Água é uma eloqüente afirmação de que o homem transforma. Constrói seu destino e sua liberdade.